Paulo e a Lei — Samuele Bacchiocchi
Samuele Bacchiocchi foi teólogo e professor de teologia da Andrews University, no Estado do Michigan. Conhecido pelo seu trabalho histórico “From Sabbath to Sunday”, Bacchiocchi foi o primeiro não-católico a formar-se na Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma, tendo recebido uma medalha de ouro do Papa Paulo VI por conquistar a distinção acadêmica summa cum laude.
Tradutor: Nicolas Perejon
Capítulo 6 do Livro The Sabbath in the New Testament
No debate Sábado-Domingo, é costumeiro apelar a Paulo em defesa de uma visão de abrogação da lei do Antigo Testamento em geral e do sábado em particular. Em vista dessa imensa importância atribuída aos comentários de Paulo envolvendo a lei e o sábado, esse capítulo considerará as atitudes de Paulo em relação a lei no geral. Este estudo proverá as bases para examinar nos pŕoximos capítulos a visão de Paulo sobre o sábado em particular.
Procedimento. Para determinar a visão de Paulo sobre a lei devemos proceder primeiro examinando a aparente tensão entre as declarações negativas e positivas de Paulo sobre a lei. Segundo, devemos nos atentar a encontrar uma resolução a essas tenções pela distinção nos escritos de Paulo entre as funções morais e salvíficas (soteriológicas) da lei e reconhecendo que seu criticismo da lei é direcionada não para os judeus-cristãos mas para os gentios judaizantes.
1. Usos do Termo “Lei”
Significados Variados. Paulo utiliza o termo “lei-nomos” pelo menos 110 vezes nas epístolas, mas não de uma forma uniforme. O mesmo termo “lei” é usado por Paulo para se referir a coisas como a lei mosaica (Gl 4:21; Rm 7:22, 25; 1 Cr 9:9), o Antigo Testamento inteiro (1 Cr 14:21; Rm 3:19, 21), a vontade de Deus escrita no coração dos gentios (Rom 2:14–15), o princípio governador de contuda (obras ou fé — Rm 3:27), inclinações más (Rom 7:21), e orientação do Espírito (Rm 8:2).
As vezes o termo “lei” é utilizado por Paulo de uma forma pessoal como se o termo fosse Deus: “seja o que for que diz a lei ela fala para aqueles que estão debaixo da lei” (Rm 3:19). Aqui a palavra “lei” pode ser substituída com a palavra “Deus” (cf. Rm 4:15; 1 Cr 9:8).
Nossa preocupação imediata não é verificar as variações paulinas de utilizações do termo “lei”, ao invés disso, estabelecer a visão do apóstolo sobre a lei do Antigo Testamento no geral. Paulo ensinou que Cristo abrogou a lei mosaica em particular e/ou a lei do Antigo Testamento em geral, e que consequentemente cristãos não estão mais obrigados a observá-las? Esta visão tem predominado em muito a história cristã e ainda é tenazmente defendida por numerosas igrejas antinomistas.
2. Um Conceito Duplo de Lei
Uma Aparente Tensão. Muitos estudos recentes desafiaram a interpretação tradicional. É colocado, por exemplo, que Paulo tinha um “conceito duplo” sobre a lei, “algumas vezes dizendo que ela era boa e plena em Cristo e as vezes que ela era ruim e tinha sido abolida em Cristo”. [1]
Em Efésios 2:15, Paulo fala sobre a lei como tendo sido “abolida” por Cristo, enquanto que em Romanos 3:31 ele explica que justificação em Jesus Cristo não derruba a lei mas a “estabelece”. Em Romanos 7:6 ele declara que “agora estamos libertos da lei” enquanto que poucos versos depois ele escreve que “a lei é santa, e os mandamentos são santos, bons e justos”.
Em Romanos 10:4, Paulo escreve que “Cristo é o fim da lei” enquanto no capítulo 8:3–4, ele explica que Cristo veio “em semelhança de carne pecaminosa… para que se cumpram em nós as justas exigências da lei”. Em Romanos 3:28, ele mantém que o “homem é justificado pela fé separado das obras da lei”, enquanto que em 1 Coríntios 7:19 ele declara que “nem circuncisão nem incircuncisão contam para qualquer coisa, mas guardar os mandamentos de Deus”. Em 2 Coríntios 3:7 Paulo designa a lei como “a dispensação da morte” enquanto que em Romanos 3:2 ele vê ela como parte do “oráculo de Deus confiada aos judeus”.
Uma Resolução de Tensão. É possível reconciliar as aparentes declarações contraditórias de Paulo sobre a lei? Como pode Paulo ver a lei como sendo tanto “abolida” (Ef 2:15) e “estabelecida” (Rm 3:31), desnecessária (Rm 3:28) e necessária (1 Cor 7:19; Ef 6:2, 3; 1 Tm 1:8–10)?
Uma explicação popular tem sido que as declarações negativas de Paulo se referem a lei mosaica cerimonial, enquanto as positivas se referem a lei moral dos dez mandamentos. Tal explicação, contudo, é baseado em uma distinção arbitrária entre leis morais e cerimoniais que não podem ser encontradas nos escritos de Paulo.
A explicação é encontrada em diferentes contextos no qual Paulo fala sobre a lei. Quando ele fala sobre a lei em um contexto de salvação (justificação — posição correta diante de Deus), ele claramente afirma que guardar a lei não tem valor (Rm 3:20).
Por outro lado, quando Paulo fala sobre a lei no contexto de conduta cristã (santificação — vida correta diante de Deus), então ele mantém o valor e validade da lei de Deus (Rm 7:12; 13:8–10; 1 Cr 7:19). Por exemplo, quando Paulo fala sobre as várias formas da maldade humana em 1 Timóteo 1:8–10, ele explicitamente afirma “agora nós sabemos que a lei é boa” (v. 8).
A Cruz de Cristo. Central para o entendimento de Paulo é a Cruz de Cristo. Dessa perspectiva, ele tanto nega quanto afirma a lei. Negativamente, o apóstolo repudia a lei como base de justificação: “se justificação é pela lei, então Cristo morreu sem propósito” (Gl 2:21).
Positivamente, Paulo ensina que a lei é “espiritual, boa, santa e justa” (Rm 7:12, 14, 16; 1 Tm 1:8) porque ela expõe pecado e revela os padrões éticos de Deus. Portanto, ele afirma que Cristo veio “para que os justos requisitos da lei fossem completos em nós” através do poder dinâmico de Seu Espírito (Rm 8:4).
Três vezes Paulo declara: “nem circuncisão nem incircuncisão contam” e cada vez ele conclui sua declaração com uma diferente frase : “mas manter os mandamentos de Deus… mas obras de fé através do amor… mas uma nova criação” (1 Cr 7:19; Gl 5:6; 6:15). O paralelismo sugere que Paulo equaliza guardar os mandamentos de Deus com uma obra de fé e nova nova vida em Cristo. O cristão, portanto, está debaixo da lei como uma revelação dos padrões éticos de Deus para sua vida, mas não está debaixo da lei como um método de salvação. Paulo rejeita a lei como um método de salvação mas o mantém como um padrão para conduta cristã.
3. A Lei e os Gentios
Para notar o criticismo de Paulo em perspectiva, é importante perceber que as cartas de Paulo foram escritos para congregações feitas predominantementes de gentios conversos, muitos deles eram antigos “tementes a Deus” (1 Ts 1:9; 1 Cor 12:2; Gl 4:8; Rm 11:13; 1:13; Cl 1:21; Ef 2:11). Um problema crucial entre os gentios-cristãos foram seus direitos para aproveitar de plena participação no povo de Deus sem se tornar membros da comunidade da aliança através da circuncisão.
Um Problema Judaico. Isto não era apenas um problema cristão. W. D. Davies recentemente apontou que a relação de Israel com o mundo gentílico era o problema teológico principal do Judaísmo no primeiro século. [2] Basicamente o problema dos judeus consistia em determinar quais mandamentos os gentios tinham de observar para que eles tivessem parte no mundo que viria.
Nenhuma resposta clara a essa questão existia no tempo de Paulo. Alguns judeus manteram que os gentios teriam que observar apenas um número limitado de mandamentos (leis noéticas). Outros judeus, no entanto, como a Casa de Shammai, insistiram que os gentios tinham que observar toda a lei, incluindo a circuncisão. Em outras palavras, eles teriam que se tornar membros plenos da aliança em comunidade para compartilhar as bençãos do mundo que viria. [3]
Legalismo Gentílico. Lloyd Gaston observa com perspicácia que “é por conta dessa falta de clareza que o legalismo — o fazer certas obras para ganhar o favor de Deus e ser contado como justo — cresceu um problema gentílico e não judaico”. [4] Salvação era para todos os que eram membros da comunidade da aliança, mas desde que tementes a Deus não estavam debaixo da aliança, eles tinham que estabelecer sua própria justiça para ganhar tal certeza da salvação.
Marcus Barth mostrou que a frase “obras da lei” não é encontrada nos textos judaicos e designa a adoção de determinas práticas judaicas pelos gentios para garantir sua salvação como parte da aliança do povo de Deus. [5] Reconhecimento dessa atitude legalística gentílica é importante para entender o plano de fundo da crítica de Paulo sobre a lei.
Um Problema Cristão. O problema judaico se gentios eram salvos dentro ou fora da aliança breve se tornou um problema cristão. Antes de sua conversão e comissão divina aos gentios, Paulo aparentemente acreditava que os gentios precisavam conformar-se com a lei mosaica, incluindo a circuncisão, para serem salvos. O último é sugerido pela frase “porém quando eu ainda pregava a circuncisão” (Gl 5:11), que implica que em uma época ele pregava a circuncisão como base para a salvação.
Depois de sua conversão e comissão divina para pregar o Evangelho aos gentios, Paulo entendeu que os gentios compartilhavam as bençãos da salvação sem se tornar parte da comunidade de aliança através da circuncisão. Para defender essa conviccção, Paulo apela em Romanos 4 e Gálatas 3 ao exemplo de Abrão que se tornou pai de todo aquele que acreditava pela fé antes dele ser circuncidado.
Na proclamação de seu Evangelho da não-circuncisão, Paulo enfrentou um desafio duplo. Por um lado, ele enfrentou a oposição dos judeus e judeus-cristãos porque eles falharam em entender “Israel não entendeu” — Rm 10:19) que através de Cristo, Deus completou suas promessas para Abraão em relação aos gentios. Por outro lado, Paulo teve que lidar com os esforços mal-interpretados dos gentios que estavam tentados a adotar a circuncisão e outras práticas para garantir suas savações e se tornarem membros da comunidade de aliança (Gl 5:2–4).
4. O Criticismo de Paulo da Lei
Lei como um Documento de Eleição. Para contrariar o duplo desafio de judeus e gentios cristãos, Paulo foi forçado a falar criticamente da lei como um documento de eleição. Muitos acadêmicos tem recentemente mostrado que o conceito de aliança — tão central no Antigo Testamento — se tornou mais e mais expresso pelo termo “lei” (torah-nomos). [6] O status de alguém diante de Deus veio a ser determinada pela sua atitude diante da lei (torah-nomos) como um documento de eleição e não bela obediência a mandamentos específicos. [7]
A lei passou a significar a revelação da vontade da eleição de Deus manifestada em sua aliança com Israel. Obviamente essa visão criou um problema para os gentios incircuncisos porque eles se sentiram excluídos da certeza da salvação provida pela aliança.
Essa insegurança naturalmente levou gentios a “desejarem estar debaixo da lei” (Gl 4:21), isto é, se tornarem membros plenos da aliança através do recebimento da circuncisão (Gl 5:2). Paulo se sentiu compelido a reagir fortemente contra essa tendência porque isso minou a universalidade do Evangelho.
Para esmagar o “desejo de estar debaixo da lei” dos gentios, Paulo apela para a Lei (Pentateuco), especificamente a Abraão, para argumentar que a mãe de suas duas crianças, Ismael e Isaque, representam duas alianças: a primeira baseada em obras e a segunda baseada em fé (Gl 4:22–31); a primeira oferecendo “escravidão” e a segunda resultando em “liberdade”. A primeira, Agar, que dá à luz “filhos da escravidão”, é identificada com a aliança do Monte Sinai (Gl 4:24).
A Aliança do Sinai. Por que Paulo ataca tão asperamente a aliança do Sinai que, depois de tudo, foi estabelecida pelo mesmo Deus que fez uma aliança com Abraão? Além do mais, a aliança do Sinai não continha provisões de graça e perdão (por exemplo, o tabernáculo — Ex 25–30) além de princípios de conduta (Ex 20–23)? A resposta para essas questões é encontrada no interesse de Paulo de estabelecer a legitimação da salvação de gentios como gentios.
Para atingir esse objetivo, Paulo ataca o entendimento de lei (aliança) como um documento exclusivo de eleição. Isso não significa que ele nega a possibilidade de salvação para judeus que aceitaram Cristo como plenitude da aliança do Sinai. Ao contrário, ele explicitamente reconhece que assim como ele foi “confiado o evangelho da incircuncisão” também “Pedro foi confiado o evangelho da circuncisão” (Gl 2:7).
Dois Evangelhos. Paulo não explica a diferença básica entre os dois evangelhos. Podemos presumir que desde que a circuncisão se tornou sinônimo de aliança, o evangelho ao cirucnciso enfatizou que Cristo era a plenitude da aliança do Sinai. Isso possibilitaria aos judeus serem salvos como judeus, isto é, enquanto mantendo sua identidade como um povo de aliança. Cristo seria visto como Aquele que através de seu sangue ratificou a aliança fazendo-a operativa (Mt 26:28).
Note que Paulo não nega o valor da circuncisão para os judeus. Ao contrário, ele afirma: “A circuncisão, na verdade, é de valor se você obedece a lei; mas se você quebra a lei, sua circuncisão se torna incircuncisão” (Rm 2:25). Novamente em Romanos 9 a 11 Paulo não repreende os judeus de serem “judaicos” em seu estilo de vida (11:1) mas de falharem em entender que os gentios em Cristo tinham igual acesso ao Reino como gentios.
Ausência do Termo “Perdão”. Para defender seu evagenlho aos incircuncisos, Paulo enfatiza que a justificação (posição correta diante de Deus) é “pela fé sem obras da lei” (Rm 3:28; Gl 3:8).
É notável que enquanto o termo “justificação” e palavras relacionadas com esse termo ocorrem nos escritos de Paulo oito vezes, o termo “perdão” e “arrependimento” são espetacularmente ausentes. [8] Uma razão é sugerida pelo feto de que “arrependimento” implica retornar ao Deus da aliança, mas Paulo estava apelando aos gentios para se voltarem a Deus pela primeira vez.
A segunda razão é que “perdão” — um conceito predominante na Escritura — tem relação com a dimensão pessoal da salvação. Isso ele faz ensinando a justificação “pela fé, sem obras da lei” (Rm 3:28). Essa doutrina permite que Paulo defenda a universalidade da salvação tanto entre judeus e gentios, como indica o próximo verso: “Ou é Deus apenas Deus dos judeus? Ele não é Deus dos gentios também? Sim, de gentios também” (Rm 3:29; cf. 1:16–17).
Conclusão
A conclusão que emerge das considerações acima expostas é que Paulo não ataca a validade e o valor da lei como um guia moral para a conduta cristã. Ao contrário, ele enfaticamente afirma que Cristo especificamente veio “para que os requisitos da lei sejam completos em nós” (Rm 8:4). O que Paulo critica não é a moral mas o entendimento soteriológico da lei, isto é, a lei vista como um documento de eleição que inclui judeus e exclui os gentios.
A pressão dos judaizantes que estavam exigindo a circuncisão dos gentios, fez com que fosse necessário para Paulo atacar o conceito exclusivo de aliança de lei. “Mas”, como pontua George Howard, “dentro de outras circunstâncias ele [Paulo] poderia ter insistido na importância da retenção de Israel de sua distinção”. [9]
A falha para distinguir nos escritos de Paulo o uso da lei de modo moral e soteriológico, e a falha para reconhecer que seu criticismo da lei é direcionado não aos judeus-cristãos mas direcionado aos gentios judaizantes, levou muitos a concluírem falaciosamente que Paulo é um antinomista que rejeitou o valor e validade da lei como um todo. Tal visão é totalmente injustificável porque, como podemos ver, Paulo rejeita a lei como um método de salvação mas a mantém como um padrão moral da conduta cristã.
[1] Lloyd Gaston, “Paul and the Torah” em Anti-Semitism and the Foundations of Christianity, ed. by Alan T. Davis (New York, 1979), p. 62. Gaston provê uma análise mais perceptiva sobre a atitude de Paulo em relação a lei.
[2] W. D. Davies, “From Scweitzer to Scholem. Reflections on Sabbatai Svi”, Journal of Biblical Literature 95 (1976): 547.
[3] Para uma discussão informativa do entendimento judaico de salvação de Israel e dos gentios, veja E. P. Sanders, “The Covenant as a Soteriological Category and the Nature of Salvation in Palestinian and Hellenistic Judaism”, Jews, Greeks and Christians (Leiden, 1976), pp. 11–44; também Lloyd Gaston (n. 1), p. 56–61.
[4] Lloyd Gaston (n. 1), p. 58.
[5] Marcus Barth, Ephesians (Anchor Bible, 1974), pp. 244–248.
[6] Veja D. Rossler, Gesetz und Geschichte (Neukirchen, 1960); E. P. Sanders (n. 3), p. 41, conclui: “salvação vem da adesão a aliança, enquanto obediência aos mandamentos preserva um lugar na aliança”.
[7] Lloyd Gaston corretamente questiona: “Por que os intérpretes cristãos não aprendem isso há muito tempo com essas palavras clássicas como S. Schechter, Aspects of Rabbinic Theology (New York, 1909), ou A. Buchler, Studies in Sin and Atonement (Oxfordo, 1928), especialmente p. 1–118?” (n. 1), p. 70.
[8] Kristen Stendahl pontua sobre este fato, dizendo: “Se alguém olhar para uma concordância grega do Novo Testamento, ficará surpreso com o fato de que nas epístolas paulinas ‘justificação (dikaiosune) — e as palavras relacionadas a ela […] são penetrantes em certos estratos do pensamento de Paulo. Mas a palavra ‘perdão’ (aphesis) e o verbo ‘perdoar’ (aphienai) estão espetacularmente ausentes.” (Paul Among Jews and Gentiles, 1976, p. 23)
[9] George Howard, Paul: Crisis in Galatia. A Study in Early Christian Theology (Cambridge, 1979), p. 81.