Páscoa na Igreja Primitiva: Parte 1 — Samuele Bacchiocchi

Judaísmo Messiânico
21 min readMar 7, 2023

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Samuele Bacchiocchi foi teólogo e professor de teologia da Andrews University, no Estado do Michigan. Conhecido pelo seu trabalho histórico “From Sabbath to Sunday”, Bacchiocchi foi o primeiro não-católico a formar-se na Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma, tendo recebido uma medalha de ouro do Papa Paulo VI por conquistar a distinção acadêmica summa cum laude.

Capítulo 4 do livro God’s Festivals in Scripture and History

Tradução: Nicolas Perejon

A importância da Páscoa na igreja primitiva é evidência pelas controvérsias que emergiram a respeito da época e maneira de sua observância. De fato, a controvérsia de Páscoa começou tão intensa na segunda parte do segundo século que ameaçava dividir as igrejas cristãs. Vendo-a como a Festa da Redenção, a mais importante festa do calendário cristão, os cristãos primitivos estavam ansiosos para a observar na época e maneira correta.

O estudo da observância da Páscoa na igreja primitiva é vital para nossa investigação porque ela valida o que nós encontramos no Novo Testamento sobre seus significado e continuidade. Enquanto as tradições cristãs primitivas não são sempre um guia seguro para determinar práticas religiosas hoje, porque o mistério da iniquidade já existia na época dos apóstolos (2 Tessalonicenses 2:7), elas também providenciam um valoroso entendimento em como os ensinos bíblicos e práticas tais como a Páscoa foram entendidas e observadas dentro de diferentes comunidades cristãs. Para ser sincero com nossa herança cristã, nós temos que ser sensitivos ao testemunho destes cristãos que procuraram ser sinceros em seus ensinamentos da Palavra de Deus.

Objetivos do Capítulo — Este capítulo tem dois objetivos, que são divididos em duas partes. A primeira parte endereça três argumentos comuns citados para negar a continuidade no Novo Testamento dos Dias Santos do Antigo Testamento. Essencialmente, esses são os mesmos argumentos para negar a continuidade do sábado. Uma análise destes argumentos é mais importante porque ele expõe as falácias dos equívocos prevalecentes e encoraja um estudo mais objetivo da relevância dos festivais do Antigo Testamento para os cristãos hoje.

A segunda parte do capítulo examina a observância da Páscoa no cristianismo primitivo e nota os fatores que contribuíram para o abandono da data bíblica da Páscoa (14 de Nisã) e a adoção da Páscoa Dominical. O estudo mostra que esta mudança afetou não apenas a data da Páscoa como também seu significado e experiência. Na época, a Páscoa Dominical se tornou associada com inúmeras práticas pagãs e superstições que eram estranhas ao significado e experiência da Páscoa Bíblica.

Parte I — Argumentos Contra a Observância dos Dias Santos.

Cristo, o Cumprimento dos Dias Santos? Um primeiro argumento contra a observância cristã dos Dias Santos tais como a Páscoa ou o sábado é a crença de que eles foram substituídos por uma nova realidade existencial trazida pela redenção de Cristo. Alguns alegam que Cristo cumpriu a tipologia redentiva da Páscoa e do sábado sendo sacrificado como Cordeiro Pascal e oferecendo a nós o descanso da salvação. Consequentemente, os cristãos não mais precisam observar estes dias, desde que a redenção messiânica para qual eles apontavam chegou.[1]

Este argumento é baseado na suposição falsa de que a vinda de Cristo cumpriu tão completamente que o significado tipológico da Páscoa e do sábado e suas observâncias se tornaram obsoletas. Tal raciocínio ignora o claro testemunho da Escritura. Em relação à Páscoa nós vimos no capítulo 2 que Cristo explicitamente disse: “não a comerei [a Páscoa] até que se cumpra no reino de Deus” (Lucas 22:16). As palavras de Jesus fizeram disso claro que há ainda um futuro cumprimento da Páscoa que será realizado no estabelecimento do reino de Deus. Similarmente, sobre o sábado, a escritura diz, “Resta um descanso sabático para o povo de Deus” (Hb 4:9).[2]

A tipologia de Páscoa, tal como a do sábado, vai além da cruz para a consumação escatológica da redenção. A libertação dos israelitas da opressão egípcia prefigurou a libertação dos remidos “fora da grande tribulação” (Ap 7:14). A primeira libertação do Egito marcou a instituição de Páscoa, a libertação final do povo de Deus será celebrada pela “ceia das bodas do Cordeiro” (Ap 19:9).

É importante notar que algumas instituições do Antigo Testamento, como a Páscoa, tem três significados: histórico, tipológico e escatológico. Historicamente, a Páscoa comemora a divina libertação da opressão egípcia. Tipologicamente, a Páscoa representa a libertação espiritual da escravidão do pecado. Escatologicamente, a Páscoa aponta para a final libertação do povo de Deus no Retorno de Cristo. Isso significa que enquanto os sacrifícios rituais tipológicos da Páscoa terminaram na cruz quando Cristo, nosso Cordeiro Pascal, foi sacrificado, a função escatológica da Páscoa continua através do novo ritual tipológico instituído por Cristo para comemorar sua Paixão e Parousia. A observância de Páscoa nos permite conceitualizar e internalizar as novas realidades espirituais que representam. Ela nos convida a comemorar o sofrimento e morte de Cristo e olhar à frente para a feliz reunião com nosso Salvador em Sua Vinda. (Ap 19:9).

Reter a Páscoa meramente como um símbolo da realidade existencial da salvação enquanto nega sua observância atual é uma flagrante contradição. Como pode os cristãos experienciarem a realidade existencial da salvação representada pela Páscoa, quando sua real observância, que forma a base de tal experiência, é renunciada ou denunciada? Abolir a observância da Páscoa significa privar os cristãos de um veículo mais eficaz dado por Deus para compreender e experimentar a realidade da salvação.

A Alegada Descontinuidade entre Antigo e Novo Testamentos. Um segundo argumento contra a observância dos Dias Santos tais como a Páscoa é a falta de instruções explícitas no Novo Testamento sobre a época e a maneira de sua observância. Isto é interpretado como uma prova de sua finalização com a morte de Cristo. Esta visão prevalecente descansa na suposição gratuita de que a vinda de Cristo trouxe uma radical descontinuidade entre o Antigo e o Novo Testamentos, Lei e Graça, Judaísmo e Cristianismo. O abandono dos Dias Sagradas do Antigo Testamento é visto como a mais óbvia evidência da descontinuidade radical.

Este entendimento dualístico e antagonista do entendimento do Antigo e Novo Testamentos como sendo mutualmente excludentes tem atormentando o Cristianismo durante muito tempo de sua história. Ela pode ser traçada de volta ao gnóstico Marcião (por volta de 150 d.C.), que rejeitou o Antigo Testamento e suas instituições como produtos de um deus mau. Sua influência ainda é evidente hoje na teologia dispensacionalista que vê Israel e a Igreja como dois povos separados, com duas diferentes origens e destinos.

De acordo com a construção dispensacionalista, os primeiros convertidos que aceitaram a Cristo como seu Messias imediatamente se perceberam como “um Novo Israel”, com um Novo Moisés, uma Nova Fé e um novo calendário litúrgico. Supostamente, eles imediatamente reconheceram que a dispensação da Lei passou e agora eles estavam vivendo na dispensação da Graça. Para dar expressão para sua nova fé, os primeiros cristãos imediatamente sentiram a urgência de estabelecer, entre outras coisas, novos locais de adoração, chamados, Igrejas Cristãs, e novos Dias Sagradas, chamados Domingo, Domingo de Páscoa e Natal.

Esta concepção das origens cristãs é grosseiramente imprecisa e enganosa. O Novo Testamento reconhece que a vinda de Cristo trouxe uma certa descontinuidade pelo cumprimento das instituições tipológicas do Antigo Testamento, mas esta descontinuidade não é nunca interpretada nos termos da abolição da lei Mosaica, em geral, ou dos Dias Santos, em particular. O significado da descontinuidade deve ser definido à luz do senso de continuidade que é evidente no Novo Testamento. Já mostrei em outro lugar como essa continuidade está presente em vários livros do Novo Testamento[3]. Neste contexto, eu limito minhas observações aos escritos de Lucas.

Continuidade em Lucas. Lucas enfatiza a continuidade entre judaísmo e cristianismo de variadas formas. Um bom exemplo é providenciado em seu retrato da igreja apostólica. De novo e de novo ele reporta a conversão em massa de milhares de judeus (Atos 2:41; 4:4; 5:14; 9:42; 12:24; 13:43; 14:1; 17:12; 21:20). Para um leitor moderno, “conversão” implica uma mudança radical de estilo de vida e/ou religião. Isso, no entanto, não era necessariamente o caso com os primeiros convertidos. Os “muitos milhares” de judeus que “creram” (Atos 21:20) não viram sua aceitação de Jesus de Nazaré como o Messias esperado representando uma quebra de sua religião judaica e entrando em uma nova religião — o cristianismo. Eles simplesmente se viam como “judeus crentes”.

Judeus poderiam ser convertidos pelos milhares, porque a aceitação deles de Jesus de Nazaré como Messias significa não uma rejeição de sua religião, mas a realização de suas expectativas messiânicas. Lucas descreve milhares de judeus que se convertem como “zelosos da lei” (Atos 21:20). Paulo é descrito em seus discursos como um “fariseu” (Atos 23:6) que acredita em tudo escrito na lei e nos profetas (Atos 24:14) e que não fez nada “contra a lei dos judeus, ou contra o templo” (Atos 25:8; 28:17). Para provar que ele viveu “em observância da lei”, Paulo concordou em submeter um ritual de purificação no templo (Atos 21:24–26) durante sua última visita a Jerusalém, por volta de 58 d.C.

Repetidamente, Lucas fala da “lei de Moisés” (Lucas 2:22; 24:44; Atos 13:39; 28:23), que ele chama “os oráculos vivos” (Atos 7:38). Jacob Jervell nota que “não há conflito com a lei nas atitudes de Jesus como descrito nas várias disputas sobre o sábado. Lucas recorda não menos do que quatro disputas e ele está disposto a mostrar que Jesus agiu em total concordância com a lei, e que os líderes judeus não eram hábeis a fazer nenhuma objeção”.[4]

O Concílio de Jerusalém. O Concílio de Jerusalém geralmente é considerado o divisor de águas da história da igreja apostólica quando uma quebra definitiva foi feita em princípio com a lei. A isenção de circuncisão garantida aos gentios é interpretada como representando um abandono do resto das leis do Antigo Testamento, incluindo os Dias Santos. Esta interpretação é imprecisa porque o tribunal de apelação final do concílio é o próprio Moisés: “Pois desde as primeiras gerações Moisés tem em cada cidade aqueles que o pregam, pois ele é lido todos os sábados nas sinagogas” (Atos 15:21).

Jervell corretamente nota que “Não importa quanto a passagem complicada de Atos 15:21 deva ser interpretada em detalhes, a função do versículo é validar o decreto e invocar Moisés como testemunha. Todos que verdadeiramente escutam Moisés sabem que o decreto expressa o que Moisés demanda dos gentios para que vivam entre os israelitas”.[5] O Concílio de Jerusalém não isenta os gentios das observâncias de toda a lei mosaica, mas apenas da lei da circuncisão. Como pode o Concílio ter rejeitado a autoridade de Moisés quando seu decreto que os gentios deveriam observar quatro leis rituais (Atos 15:20, 29) é baseada sobre a legislação mosaica sobre os estrangeiros vivendo entre os israelitas (Lv 17–18)?[6]

OS Lugares e Épocas dos Encontros Cristãos. O senso de continuidade também pode ser visto na frequência de referências de Lucas ao templo, à sinagoga, orações e pregações das quais todas sugerem que a adoração cristã foi vista como uma continuação e reinterpretação dos serviços religiosos judaicos. A sinagoga é o local de adoração mais frequentemente mencionado. Paulo vai a sinagoga regularmente com “judeus e gregos”, e mesmo Apolo vai com os crentes em Éfeso para a sinagoga (Atos 18:24–26).[7]

Depois do martírio de Estevão, Paulo foi à procura de cristãos nas sinagogas em Damasco (Atos 9:2; 22:19), presumivelmente porque eles ainda se encontravam lá. Depois em seu próprio ministério, o apóstolo, “segundo seu próprio costume” (Atos 17:2), ia regularmente na sinagoga aos sábados, ao ar livre e em casas, ambos com judeus e gentios (Atos 13:14; 17:2; 18:4; 13:44; 16:13). Paulo guardou os dias de Pães sem Fermento em Filipos (Atos 20:6) e estava ansioso para estar em Jerusalém “no dia de Pentecostes” (Atos 20:16). Tudo isso sugere que a vida da igreja apostólica era ainda regulada pelo calendário litúrgico judaico.

Os primeiros convertidos eram predominantemente judeus e tementes a Deus que eram muito zelosos na observância da lei (Atos 21:2). Eles viram em Cristo o cumprimento da lei no sentido do Um que clarificava seu significado e realizava suas promessas. Gradualmente, eles perceberam que certos aspectos da lei, tais como estes relacionados ao ministério levítico e sacrifícios, se tornaram obsoletos com a vinda de Cristo. Não existe indicações, entretanto, que essa percepção levou os cristãos a duvidar ou negar o valor e validade dos Dias Santos como sábado ou a Páscoa.

Paulo e a Lei. Os dois argumentos acima, muito usados para negar a continuidade dos Dias Santos no Novo Testamento, são superados em importância por um terceiro argumento, que apela a Paulo em defesa da abolição da lei do Antigo Testamento, em geral, e dos Dias Santos, em particular. Em vista dessa imensa importância atribuída aos comentários de Paulo sobre a lei e os Dias Santos, eu examinei este assunto em grande extensão em dois de meus livros sobre o Sábado.[8] Leitores interessados são encaminhados para esses estudos. Neste contexto eu me limito a observações básicas sobre a atitude de Paulo em relação a lei, em geral, e aos Dias Santos, em particular.

Estudos recentes mostraram que Paulo tinha um “conceito duplo” da lei, “algumas vezes dizendo que ela é boa e foi cumprida em Cristo e as vezes dizendo que ela ruim e havia sido abolida em Cristo”.[9] Em Efésios 2:15, Paulo fala da lei como sendo “abolida” por Cristo, enquanto em Romanos 3:31 ele explica que a justificação pela fé em Jesus Cristo não derruba a lei, mas a “estabelece”. Em Romanos 7:6, ele atesta que “nós agora somos exonerados da lei”, enquanto em alguns versos depois ele escreve que a “lei é santa, e os mandamentos são santos, justos e bons” (7:12).

Em Romanos 10:4, Paulo escreve que “Cristo é o fim da lei”, enquanto em 8:3–4, ele explica que Cristo veio “na semelhança de carne pecaminosa […] para que se cumpram em nós as justas exigências da lei”. Paulo mantêm em Romanos 3:28 que “o homem é justificado pela fé separado das obras da lei”; mas em 1 Coríntios 7:19, ele atesta que “nem circuncisão nem a incircuncisão contam para qualquer coisa, mas guardar os mandamentos de Deus”. Em 2 Coríntios 3:7 Paulo designa a lei como “a dispensação da morte” enquanto em Romanos 3:2, ele a vê como parte dos “oráculos de Deus” confiados aos judeus.

Como pode Paulo ver a lei tanto como “abolida” (Ef 2:15) e “estabelecida” (Rm 3:31), desnecessária (Rm 3:28) e necessária (1 Cor 7:19; Ef 6:2, 3; 1 Tm 1:8–19)? Uma explicação popular diz que as atestações negativas de Paulo se referem a lei cerimonial mosaica, enquanto que as positivas se referem a lei moral dos Dez Mandamentos. Tal explicação, porém, é baseada na distinção arbitrária entre leis morais e cerimoniais que não podem ser encontradas nos escritos de Paulo.

A explicação é encontrada nos diferentes contextos nos quais Paulo fala sobre a lei. Quando ele fala sobre a lei no contexto da salvação (justificação — estar correto diante de Deus), ele claramente afirma que a guarda da lei não valor (Rm 3:20). Mas quando Paulo fala da lei no contexto da conduta cristã (santificação — vida correta diante de Deus), ele mantêm o valor e validade da lei de Deus (Rm 7:12; 13:8–10; 1 Cor 7:19).

Central para o entendimento de Paulo é a Cruz de Cristo. Dessa perspectiva, ele tanto nega quanto afirma a lei. Negativamente, o apóstolo repudia a lei como base de justificação: “se justificação é pela lei, então Cristo morreu sem propósito” (Gl 2:21). Positivamente, Paulo ensina que a lei é “espiritual, boa, santa e justa” (Rm 7:12, 14, 16; 1 Tm 1:8) porque ela expõe pecado e revela os padrões éticos de Deus. Portanto, ele afirma que Cristo veio “para que os justos requisitos da lei fossem completos em nós” através do poder dinâmico de Seu Espírito (Rm 8:4).

A falha em distinguir nos escritos de Paulo a diferença entre seu uso moral e soteriológico da lei levou muitos a concluir falaciosamente que Paulo é um antinomista que rejeitou o valor e a validade da lei como um todo. Tal visão é totalmente injustificada, porque Paulo rejeita a lei como um método de salvação, mas a sustenta como um padrão moral de conduta cristã.

Paulo e os Dias Santos em Colossenses 2:16. Historicamente, muitos acreditaram e ainda acreditam que Paulo ensinou que os cristãos não estão sobre a obrigação de observar as leis do Antigo Testamento, em geral, e dos Dias Santos em particular. Esta conclusão é baseada em três textos Paulos, sendo, Colossenses 2:14–17, Gálatas 4:8–10 e Romanos 14:5–6, onde referência é feita à observância dos dias. Das três referências, maior importância é dada a Colossenses 2:14–17, na medida em que a passagem avisa contra prestar atenção aos regulamentes sobre várias coisas: “Portanto, ninguém vos julgue por causa de comida e bebida, ou por causa de uma festa, lua nova ou sábado. Estes são apenas uma sombra do que está por vir; mas a substância pertence a Cristo” (2:16–17).

A declaração, “Portanto, ninguém vos julgue…”, tem sido interpretada como uma condenação paulina da observância dos Dias Santos do Antigo Testamento. Apesar de sua antiguidade e popularidade, esta interpretação é totalmente equivocada, porque nesta passagem Paulo não está avisando os colossenses contra as observâncias das cinco práticas mencionadas (comer, beber, festas, luas novas e sábados), mas contra “qualquer um” (tis) que faça julgamentos em como os observar.

Uma nota deveria ser feita no fato de que o juiz que faz o julgamento não é Paulo, mas os falsos professores colossenses que impõe “regulamentos” em como observar estas práticas para atingir “rigor em devoção, auto-humilhação e severidade para o corpo” (2:23).

D. R. DeLacey, escrevendo no simpósio Froom Sabbath to Lord’s Day, corretamente comenta: “É provável que o juiz seja um homem de tendências ascéticas que se opõe à comida e à bebida dos colossenses. A maneira mais natural de entender o restante da passagem não é que ele também imponha um ritual de dias de festa, mas sim que ele se oponha a certos elementos de tal observação”.[10] Presumivelmente, o “juiz”, isto é, os falsos mestres, queria que a comunidade observasse essas práticas de maneira mais ascética (“severidade para o corpo” — 2:23, 21); para colocar de forma grosseira, os falsos mestres queriam que os crentes colossenses comessem menos e jejuassem mais.

Ao advertir contra o direito dos falsos mestres de “julgar” sobre como observar os Dias Santos, Paulo está desafiando não a validade dos Dias Santos como tais, mas a autoridade dos falsos mestres de legislar sobre a maneira de sua observância. A implicação óbvia é que Paulo neste texto está expressando não uma condenação, mas uma aprovação das práticas mencionadas, que incluíam os dias santos.

É notável que DeLacey chega a essa conclusão apesar de sua visão de que Paulo não esperava que os gentios convertidos observassem os Dias Santos. Ele escreve: “Aqui novamente (Cl 2:16), então, parece que Paulo poderia tolerar alegremente a guarda do sábado […] No entanto, interpretamos a situação, a declaração de Paulo ‘Ninguém vos julgue’ indica que nenhum regulamento rígido deve ser estabelecido sobre o uso de festivais.”[11] À luz dessas observações, concluímos que em Colossenses 2:16, Paulo expressa não uma condenação, mas uma aprovação implícita da observância dos Dias Santos.

Condenação de Perversão. Paulo nos dá apenas algumas dicas de como os falsos mestres promoveram a observância de alimentos e festivais. Ele menciona que eles insistiam em “auto-humilhação e adoração de anjos”, “rigor de devoção […] severidade para o corpo” (2:18, 23), e que eles ensinavam: “Não manuseie, não prove, não toque” (2:21). Essas frases de efeito indicam que os regulamentos não derivam da lei levítica, já que em nenhum lugar esta última contempla tal programa ascético. Embora a nomenclatura dos festivais seja judaica, a motivação e a maneira de sua observância decorrem de ideologias sincréticas.

No mundo antigo, havia uma crença generalizada de que o ascetismo e o jejum permitiam que uma pessoa se aproximasse de uma divindade e recebesse revelação divina.[12] No caso da “filosofia” colossense, os tabus dietéticos e a observância de tempos sagrados eram aparentemente considerados como uma expressão de sujeição e adoração aos poderes cósmicos (elementos) do universo (Cl 2:8, 10, 15, 20).

A advertência de Paulo contra os “regulamentos” dos falsos mestres dificilmente pode ser interpretada como uma condenação das leis mosaicas a respeito de comida e festivais, visto que o que o apóstolo condena não são os ensinos de Moisés, mas o uso pervertido deles promovido pelos falsos mestres colossenses. Um preceito não é anulado pela condenação de sua perversão.

Sombra da Realidade. Paulo continua seu argumento, dizendo: “Estes são a sombra do que há de vir; mas a substância pertence a Cristo” (Cl 2:17). A que se refere o pronome relativo “estes” (ha em grego)? Refere-se às práticas mencionadas no versículo anterior ou aos “regulamentos” (dogmata) relativos a essas práticas promovidas pelos falsos mestres?

Muito provavelmente, refere-se ao último. Primeiro, porque no versículo 16, Paulo está advertindo não contra os méritos ou deméritos da lei mosaica em relação à comida e festas, mas contra os “regulamentos” relativos a essas práticas defendidas pelos falsos mestres. Assim, é mais plausível considerar “os regulamentos” em vez das práticas reais como antecedentes de “estes”.

Em segundo lugar, porque nos versículos que se seguem, Paulo continua sua advertência contra os ensinos enganosos, dizendo: “Ninguém vos desqualifique, insistindo na humilhação. . .” (2:18); “Por que você se submete a regulamentos: ‘Não manuseie, não prove, não toque’” (2:20–21)? Uma vez que o que precede e o que segue o pronome relativo “estes” lida com os “regulamentos” dos falsos mestres colossenses, concluímos que é o último que Paulo descreve como “uma sombra do que há de vir” (2:17).

Presumivelmente, os proponentes dos falsos mestres sustentavam que seus “regulamentos” representavam uma cópia que permitia ao crente ter acesso à realidade (“plenitude”, Colossenses 2:9). Nesse caso, Paulo está voltando seu argumento contra eles, dizendo que seus regulamentos “são apenas uma sombra do que está por vir; mas a substância pertence a Cristo” (2:17). Ao enfatizar que Cristo é o “corpo” e a “cabeça” (2:17, 19), Paulo indica que qualquer “sombra” lançada pelos regulamentos não tem valor significativo.

À luz das indicações acima, concluímos que o que Paulo chama de “sombra passada” não são os Dias Santos, mas os ensinos enganosos dos falsos mestres colossenses que promoviam práticas dietéticas e a observância de tempos sagrados como auxílios auxiliares para a salvação.

Paulo e os Dias Santos em Romanos 14:5. Em Romanos 14, Paulo distingue entre dois tipos de crentes: os “fortes” que criam “de tudo pode comer” e os “fracos” que comiam apenas “vegetais” e não bebiam vinho (Rm 14:2, 21). A diferença se estendia também à observância dos dias, embora não esteja claro qual dos dois considerava “um dia melhor do que outro” e qual considerava “todos os dias iguais” (Rm 14:5).

Muitos sustentaram que os Dias Santos do Antigo Testamento estão dentro do escopo desta distinção a respeito dos dias. Eles presumem que os crentes “fracos” estimavam os dias santos melhor do que os outros dias, enquanto os “fortes” tratavam os dias santos como o resto dos dias da semana.

Os Dias Santos do Antigo Testamento podem ser legitimamente lidos nesta passagem? Na minha opinião, isso é impossível por pelo menos três razões. Primeiro, o conflito entre os “fracos” e os “fortes” sobre dieta e dias dificilmente pode ser rastreado até a lei mosaica, porque em nenhum lugar a lei mosaica prescreve vegetarianismo estrito, abstinência total de vinho ou preferência por dias presumivelmente para jejum.

Que a lei mosaica não está em jogo em Romanos 14 também é indicado pelo termo “koinos — comum”, que é usado no versículo 14 para designar comida “impura”. Este termo é radicalmente diferente da palavra “akathartos — impuro” usada em Levítico 11 (Septuaginta) para designar alimentos ilegais. Aparentemente, a disputa era sobre a carne que, por si, era lícita para comer, mas por causa de sua associação com a adoração de ídolos (cf. 1 Cor 8:1–13) era considerada por alguns como “koinos — comum”, isto é, imprópria para consumo humano.

Toda a discussão em Romanos 14 não é sobre liberdade para observar a lei versus liberdade de sua observância, mas diz respeito a escrúpulos “não essenciais” de consciência ditados não por preceitos divinos, mas por convenções e superstições humanas. Uma vez que essas convicções e práticas divergentes não minavam a essência do Evangelho, Paulo aconselha tolerância e respeito mútuos nesse assunto.

Em segundo lugar, Paulo aplica o princípio básico “observá-lo em honra do Senhor” (14:6) apenas ao caso da pessoa “que observa o dia”. Ele nunca diz o contrário, ou seja, “o homem que estima todos os dias igualmente, estima-os em honra do Senhor”. Em outras palavras, com relação à dieta, Paulo ensina que se pode honrar o Senhor tanto comendo quanto se abstendo (14:6), mas com relação aos dias, ele nem mesmo admite que a pessoa que considera todos os dias iguais não o faça para ao Senhor. Assim, Paulo dificilmente dá seu endosso àqueles que estimavam todos os dias da mesma forma.

Terceiro, se, como geralmente se presume, o crente “fraco” era aquele que observava os Dias Santos, Paulo se classificaria como o “fraco”, visto que ele observava o sábado e outras festas judaicas (Atos 18:4, 19; 17). :1, 10, 17; 20:16). Paulo, entretanto, se vê como “forte” (“nós, os que somos fortes” — 15:1); assim, ele dificilmente poderia estar pensando em dias santos quando fala da preferência sobre os dias.

A preferência por dias em Romanos presumivelmente tinha relação com dias de jejum em vez de dias de festa, uma vez que o contexto trata da abstinência de carne e vinho (Rm 14:2, 6, 21). O suporte para essa visão é fornecido pelo Didaquê (cap. 8), que ordena aos cristãos que jejuem na quarta e na sexta-feira, em vez de na segunda e na quinta-feira, como faziam os judeus.

Paulo se recusa a deliberar sobre assuntos particulares, como o jejum, porque reconhece que os exercícios espirituais podem ser realizados de maneiras diferentes por pessoas diferentes. O importante para Paulo é “seguir o que contribui para a paz e para a edificação mútua” (Rm 14,19).

Se o conflito na igreja romana fosse sobre a observância dos Dias Santos, o problema teria sido ainda mais manifesto do que o da dieta. Afinal, os hábitos alimentares são um assunto privado, mas os Dias Santos são celebrações públicas. Qualquer desacordo sobre o último teria sido não apenas perceptível, mas também inflamatório.

O fato de Paulo dedicar 21 versículos à discussão da comida e menos de dois versículos (Rm 14:5–6) à dos dias sugere que este último era um problema muito limitado para a igreja romana, presumivelmente porque tinha a ver com convicção privada sobre o mérito ou demérito de fazer certos exercícios espirituais, como jejuar em alguns dias específicos

Paulo e os Dias Santos em Gálatas 4:10. Em Gálatas, Paulo menciona que alguns cristãos se circuncidaram (Gl 6:12; 5:2) e começaram a “observar dias, meses, estações e anos” (Gl 4:10). Alguns interpretam esta passagem como uma condenação paulina da observância das festas sagradas. Essa interpretação ignora que a observância dos tempos sagrados pelos gálatas não era motivada pelas festas do Antigo Testamento, mas por crenças supersticiosas nas influências astrais. Isso é indicado pela acusação de Paulo de que a adoção dessas práticas era equivalente a um retorno à sua antiga sujeição pagã a espíritos elementais e demônios (Gálatas 4:8–9). Pelo visto, por causa de sua formação pagã, os gálatas, conforme salienta Willy Rordorf, “podiam discernir na atenção especial dada pelos judeus a certos dias e épocas nada mais do que veneração religiosa prestada a estrelas e forças naturais”.[13]

Em muitos aspectos, a polêmica em Gálatas 4:8–11 é surpreendentemente semelhante à de Colossenses 2:8–23. Em ambos os lugares, a observância supersticiosa dos tempos sagrados é descrita como escravidão aos “elementos”. Em Gálatas, porém, a denúncia dos “falsos mestres” é mais forte. Eles são considerados “malditos” (Gálatas 1:8, 9) porque estavam ensinando um “evangelho diferente”. O ensino deles de que a observância de dias e estações era necessária para justificação e salvação perverteu o próprio coração do Evangelho (Gálatas 5:4). Ao condicionar a justificação e a aceitação de Deus a coisas como a circuncisão e a observância de dias e estações, os gálatas estavam tornando a salvação dependente da realização humana. Isso, para Paulo, é uma traição ao Evangelho: “Estás separado de Cristo, tu que queres ser justificado pela lei; da graça caístes” (Gl 5:4).

É dentro desse contexto que a denúncia de Paulo sobre a observância de dias e estações deve ser entendida. Se as motivações para essas observâncias não tivessem minado o princípio vital da justificação pela fé em Jesus Cristo, Paulo teria recomendado apenas tolerância e respeito (como ele faz em Romanos 14), mesmo que algumas ideias fossem estranhas ao ensino do Antigo Testamento. As motivações para essas práticas, entretanto, adulteravam o próprio fundamento da salvação. Assim, o apóstolo não tem escolha a não ser rejeitá-los fortemente. Em Gálatas, como em Colossenses, então, não é a observância dos Dias Santos que Paulo se opõe; antes, é o uso pervertido de observâncias cultuais pagãs para promover a salvação como uma conquista humana e não como um dom divino da graça.

Em última análise, a atitude de Paulo em relação aos dias santos não deve ser determinada com base em sua denúncia de práticas heréticas e supersticiosas, mas com base em sua atitude geral em relação à lei. A falha em entender que Paulo rejeita a lei como um método de salvação, mas a mantém como um padrão moral de conduta cristã, tem sido a causa raiz de muitos mal-entendidos da atitude de Paulo em relação à lei, em geral, e aos Dias Santos, em especial.

[1] Minha análise deste argumento pode ser encontrada em Divine Rest for Human Restlessness (Roma, 1980), p. 53–56.

[2] Minha análise de Hebreus 4:9 pode ser encontrada em The Sabbath in the New Testament (Berrien Springs, Michigan, 1985), p. 72–77.

[3] Veja o capítulo 2, “The Continuity between Judaism and Christianity”, no meu livro The Sabbath in the New Testament (nota 2), p. 28–40. Para uma análise extensiva e perceptiva de como Lucas enfatiza a continuidade cristã com o judaísmo, veja Jacob Jervell, Luke and the People of God (Minneapolis, 1972), p. 41–74, 133–152.

[4] Jacob Jervell (nota 3), p. 140.

[5] Ibid., p. 144.

[6] Para uma análise das bases mosaicas das quatro leis rituais, veja H. Waitz, “Das problem des sogenannten Aposteldekrets”, Zeitschreift für Kirchengeschichte 55 (1936): 277–279.

[7] Veja minha discussão das referências lucanas a lugares e tempos de encontros cristãos em From Sabbath to Sunday (Roma, 1977), p. 135–142.

[8] Veja o apêndice em From Sabbath to Sunday, p. 339–369. Também os capítulos 6 e 7 em The Sabbath in the New Testament.

[9] Veja Lloyd Gaston, “Paul and the Torah”, em Anti-Semitism and the Foundations of Christianity, ed. Alan T. Davis (New York, 1979), p. 62. Gaston providencia uma análise mais perceptiva das atitudes de Paulo em relação à lei.

[10] D. R. De Lacey, “The Sabbat/Sunday Question and the Law in the Paulice Corpus”, From Sabbath to Lord’s Day: A Biblical, Historical, and Theological Investigation, ed. Donald A. Carson (Grand Rapids, 1982), p. 182.

[11] Ibid., ênfase fornecida.

[12] Para textos e discussões, veja G. Bornhamm, “Lakanon”, Theological Dictionary of the New Testament, ed. Gerhard Kittel (Grand Rapids, 1967), vol. 4, p. 67; J. Behm também escreve o mesmo em Theological of the New Testament, IV, p. 297: “Os gregos e romanos sabiam que a abstenção torna receptivo a revelações extáticas”.

[13] Willy Rordorf, Sunday: The History fo the Day of Rest and Worship in the Earliest Centuries of the Christian Church (Philadelphia, 1968), p. 133.

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Judaísmo Messiânico
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